Amazônia selvagem - Repórter encontra últimos habitantes da fronteira oeste do Brasil.
Nos 700 hectares do Parque Estadual de Chandless, no Acre, vivem apenas 98 pessoas, completamente isoladas. E nós partimos em direção aos extremos do Brasil.
Repórter encontra últimos habitantes da fronteira oeste do Brasil

Nos 700 hectares do Parque Estadual de Chandless, no Acre, vivem apenas 98 pessoas, completamente isoladas. E nós partimos em direção aos extremos do Brasil.

O ex-seringueiro Nilson Mendes conhece o canto dos pássaros. É um homem amazônico na imensa floresta. “Eu tenho 30 anos de observação da natureza. Estudo as plantas, fauna, flora. Mas eu digo a você: é uma questão de conviver com o animal. Porque muita gente vê, mas não consegue conviver. Eu consegui sobreviver dentro da floresta, convivendo com os animais”, diz.

A Floresta Amazônica é o maior celeiro em biodiversidade do planeta, mas também é um grande desafio para a ciência. O tesouro que existe nela ainda é desconhecido, e só os caboclos e os índios que vivem na selva conseguiram partir na frente. De uma folha, de uma casca de árvore, de uma raiz, eles conseguem extrair remédios que curam doenças graves. É a Amazônia Selvagem que queremos conhecer, com seus rios, árvores e raízes, sua imensa teia cheia de vida.

Estamos no Parque Estadual de Chandless, no Acre, com 700 hectares e segredos que ainda estão para ser descobertos. Nessa região, vivem mais de 400 espécies de aves, 300 espécies de plantas e quase 200 tipos de peixes, anfíbios, répteis e apenas 98 pessoas, completamente isoladas.

“As pessoas que moram dentro dessa unidade já estavam aqui quando parque foi criado. Por isso, elas fazem uso dos recursos naturais que existem nessa região. Então, eles caçam, eles pescam, eles usam árvores para fazer canoa para se locomoverem. Então, eles fazem uso desses recursos de forma natural para sua sobrevivência”, afirma o biólogo Jesus Rodrigues, do Parque Estadual Chandless.

Nós vamos partir em direção aos extremos do Brasil. Jesus Rodrigues será o nosso guia. Queremos chegar à terra dos brasileiros que nunca fizeram contato, índios que só foram fotografados uma vez e do alto. Nosso equipamento para essa aventura não poderia ser mais simples. Vamos seguir a viagem em duas voadeiras, barcos pequenos que já estão lotados de combustível, equipamentos e a nossa bagagem.

Essas canoas serão as nossas casas pelos próximos oito dias. A grande cheia do início do passado deixou sua marca na calha do rio. E o que estava escondido sob as águas começa a aparecer. São muitas armadilhas no nosso caminho. Foi preciso trocar a hélice de um dos nossos barcos, após nos enroscarmos em um emaranhado de galhos.

E seguimos viagem, com os olhos atentos. Em um barranco do Rio Purus, flagramos uma sucuri, com metade do corpo para fora da água. Ela está caçando, procurando roedores nos buracos da beira do rio. Deve ter uns sete metros de comprimento e logo percebe nossa presença. Soberana, ela mergulha lentamente para o fundo do rio.

Nossas voadeiras vão de um lado a outro do rio, procurando o canal para passar. Um cargueiro típico da região estava encalhado há dois dias. Com muito esforço dos tripulantes, ele consegue sair. Nesta época do ano, todos sabem que vão encalhar dezenas de vezes, ao longo da viagem. É assim para buscar frutas e pescar. Mas todos sabem também que o rio é a única saída. Na região, não existem estradas.

Nós vamos deixar o Rio Purus e entrar no Rio Chandless. Vamos pegar a parte mais difícil da viagem. E uma canoa vai ser incorporada à nossa frota. Agora, são duas voadeiras e uma canoa com motor especial, o que vai facilitar a nossa entrada.

Do alto, o Rio Chandless mais parece uma serpente dando voltas pela selva. Em época de cheia, o rio invade a selva e causa destruição. Mas falta muito pra água voltar a subir.

Por enquanto, os donos do pedaço nos observam lá de cima: o macaco guariba. E o chefe do bando, tranquilo, está no topo da árvore, enquanto a chuva não vem.

Na região, o tempo é mesmo diferente. A chuva chega sem avisar e vem forte. Encontramos uma casa e decidimos buscar abrigo. Quando chegamos, a dona de casa Maria de Fátima Nunes Pacaya estava cozinhando. Ela conta que estava preparando o chapo. “É o mingau que a gente faz da banana. Bota no fogo é, depois, a gente bate”, explica. O liquidificador é movido à manivela, já que não há energia elétrica no local.

“Eu como da minha lavoura, o que eu planto, o que eu tenho. É a banana que a gente faz, o roçado da gente. A gente planta e a gente tem. A gente não compra como na cidade”, declara Fátima.

A criação de porcos e galinhas fica solta, embaixo da casa. Joelma, a filha de 16 anos, ajuda o pai, Jerônimo, com o gado. E, assim, as crianças vão aprendendo a viver nessa beira de rio. São raros habitantes desse paraíso amazônico, um lugar onde as pessoas chegam a se esquecer da própria idade.

Denilson ainda estava lá fora, quando a chuva começou. Ele tem só 8 anos de idade e se pegar uma gripe? “Se der febre, a gente faz um chá e dá um suador. Enrola ele todo, dos pés à cabeça. Essa pessoa vai suar. Quando soa, a gente vai descobrindo devagarzinho, para o vento. Vai esfriando o corpo. Também quando já esfria o corpo, a febre não volta mais. A gente cura aqui é assim”, explica a dona de casa.

Alimentos e remédios: Fátima vive cercada de recursos naturais poderosíssimos. Denilson revela que não tem medo de andar sozinho na canoa nesse rio e que já acostumou com os bichos. “Aqui, eu nasci e me criei, já estou acostumado e não tenho medo. Só de onça que eu tenho medo”, diz o menino.

O mateiro Jerônimo Marques, marido de Fátima, está fazendo uma canoa nova. “Gastei uns 12 ou 13 dias de serviço mais ou menos aqui. Mas vou gastar mais uns 10 dias ainda de serviço, para terminar”, declara.

É como se estivesse montando um carro zero, no machado. “Cabe muita gente. Vai ficar bem possante”, aposta Jerônimo.

É a maior canoa que ele já fez. Vai ter capacidade para carregar até duas toneladas. Jerônimo é mateiro experiente e vai nos levar aos extremos da floresta. No ponto mais distante do parque, fica a casa dos pais de Fátima, os últimos habitantes do Brasil.

Ele vai nos levar, porque ele é um dos poucos que conhece essa região para onde nós vamos. É o fim do rio. “Aqui pode se considerar o fim do mundo, porque é muito distante da cidade”, diz Jerônimo.

Mas nós já nos acostumamos com os dias de viagem pelo rio. E a chuva do dia anterior fez subir o nível das águas. Assim, conseguimos chegar até onde começa uma trilha. Jerônimo vai na frente. Os galhos das árvores gigantes tampam a luz do sol. Lá em cima, um casal de araras vermelhas. Nessa espécie, macho e fêmea são fiéis, e o casamento é para sempre.

Cruzamos a mata, e, bem no meio do caminho, encontramos uma serpente venenosa, pronta para o bote. Ela está parcialmente encoberta pelas folhas. “Se a gente passa sem ver, sem perceber, corre o risco de ela picar. E nós estamos a cinco dias de distância de uma cidade onde provavelmente teria o soro antiofídico. Só nos resta tirá-la da trilha. E é o que vamos fazer".

Por essas bandas é assim: para fazer uma simples visita, é preciso viajar dias e dias. Depois de tanto esforço, quase perdemos a viagem.

Quando chegamos, Milton e Marta, pais de Fátima, estavam de saída, já dentro da voadeira, de partida para a cidade.

A última casa brasileira, hoje, está vazia. Da casa deles em adiante não mora mais ninguém. “Não mora mais um pé de pessoa. É só selva e bicho”, diz Milton Leite, morador do Parque Estadual Chandless.

Milton e Marta são os últimos moradores da fronteira oeste do Brasil. “Essa área aqui é muito sadia. Parece que Deus abençoou esse rio. A gente só pega alguma gripinha, quando a gente vai lá em Manoel Urbano, lá na cidade”, afirma o morador.

“Eu pretendo sair daqui um dia, porque, se meu marido sai, eu tenho que acompanhar ele. Ele, sozinho, tampouco não vai sair. Eu tenho que acompanhar ele, de qualquer maneira. Sou mãe dos filhos dele. Eu tenho que seguir ele”, diz a dona de casa Maria Marta Leite.

A dona de casa também revela que é apaixonada pelo marido, que é amor pra vida inteira. “Fui doida por ele e estou até agora. Agora, pior. Ele é pai dos meus filhos e estamos ficando os dois nessa idade. E eu tenho que ficar com ele. Até o dia que Deus me tirar do costado dele”, declara.

E lá vão os dois juntos na canoa, inseparáveis, vão enfrentar cinco dias de viagem até a cidade de Manoel Urbano. Mas nós seguimos na direção contrária. Vamos avançar por essa mata desconhecida e cheia de mistérios. Ao entardecer, temos que procurar uma praia para acampar.

“Parece que estamos chegando ao fim. As árvores caíram e está muito raso. Não vai dar para continuar”, revela o repórter Francisco José.

O Chandless Chá é o último igarapé de um rio que nasce na Amazônia peruana. Nós vamos acampar no local. Está cheio de rastro de animais na areia, de capivara e anta. “Exatamente o que a gente tinha previsto. Vamos passar a noite aqui. Mais uma noite junto com a natureza”, afirma Jerônimo.

Logo montamos acampamento. A fogueira ajuda a aquecer nossa comida: "só em parar um pouquinho, nesse fim de tarde, perto do rio, os mosquitos avançam. Onde está descoberto, o carapanã e o pium pegam", declara o repórter.

Nossas redes ficam ao relento. Só resta rezar para não chover à noite. "A partir daqui, só temos rios, florestas e, se nós chegarmos próximo da área de fronteira com o Peru, nós encontraremos os vestígios de índios isolados”, explica o biólogo Jesus Rodrigues.

Mas não foi desta vez que conseguimos chegar a esse povo, guardião de tanta sabedoria. No dia seguinte, iniciamos a viagem de volta. O igarapé se fechou para nós. Deixamos para trás essa Amazônia que só os índios isolados conhecem, com a certeza que um dia voltaremos. O Brasil ainda vai descobrir os mistérios dessa selva. Longe desse local, no outro lado da terra, pudemos avaliar quantos benefícios uma floresta intocada pode oferecer ao seu país.
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