No Brasil dito cordial, o futebol virou durante décadas um mediador da disputa de classes sociais. O projeto branco, europeu, ordenador e vertical, aceitou que o projeto pardo, tribal e em geral mais anárquico, se fizesse representar na grande narrativa social através do futebol e de seus jogadores de origem humilde.
Futebol passou a ser a narrativa que os machos de todas as classes sociais, opressoras e oprimidas, podiam alegar ter em comum. A divisão entre times “populares” e “de elite” (como o Corinthians e o São Paulo, nesta cidade) acabou borrada pelo hackeamento cruzado. Gente intelectualizada assumia a “paixão” pelo Corinthians.
E torcedores de origem humilde aprenderam a gostar do antigo time coxinha e “pó de arroz”. O termo pó de arroz, aliás, tem uma origem sensacional, no ainda aristocrático Fluminense do Rio, quando o jogador Carlos Alberto, em 1914, usou pó de arroz para disfarçar sua negritude – e foi denunciado quando o suor desfez sua maquiagem.
Acontece que essa narrativa cordial e acochambrada não dá mais conta da complexidade psicossocial do país. O projeto pardo botou suas manguinhas de fora. Expressões próprias como o funk, o passinho e o rolezinho, não dependem mais do aval branco. E não é mais um boyzinho arrivista patriarcal como Neymar, que anuncia cuecas subliminares e acredita piamente em truques de marketing, que o representa. Há uma crise quanto à função social do futebol.
E essa mesma mentalidade de “rivalidade”, seja lá o que significa isso, migrou para a política brasileira. Agora virou frase recorrente que qualquer cobrança ao PT é “fazer o jogo da direita”, desqualificando as reclamações. Ora, quem faz o jogo da direita é o próprio PT, que atraiçoa impiedosamente seus antigos eleitores, fazendo todo tipo de acordo eleitoreiro sem princípios.
E não se trata mais de sustentar zumbis políticos como Collor, Sarney e Maluf – uma gracinha que Lula gostava de fazer, posando de grande líder olímpico. Mas de opressão e assassinato mesmo. A monstruosidade do acordo com o agronegócio, que se arma para assassinar índios, só é comparável à do acordo com neopentecostais, que dão o mote para perseguição a gays, aos povos de terreiro, à liberdade feminina e outras liberdades individuais.
A brutal repressão da PM nos estados recriou uma figura que não existe oficialmente desde o fim da ditadura: o preso político. O caso de Fábio Hideki em São Paulo é escandaloso: acusado de ser “líder black block” e de portar explosivos que não existiam, Fábio é um ativista pacifista conhecido, preso “em flagrante” enquanto ia embora de metrô. Uma reunião pública pela libertação de Fábio foi igualmente atacada a bomba pela PM, e advogados que reclamavam da presença de soldados sem identificação agredidos e presos.
Fábio HidekiSobre esses episódios, os Advogados Ativistas publicaram carta aberta: “talvez esta formação jurídica seja o que falta para esta gestão, pois se vale de provas plantadas, intimidação, prisões ilegais e tantos outros recursos escusos para camuflar a incompetência da sua polícia e justificar investigações contra manifestantes (...) Não aceitaremos mais os abusos perpetrados por esta Secretaria de Segurança Pública”.
E segue: “É curiosa a pretensão desta Secretaria de Segurança Pública, ao afirmar a posição de um cidadão como mentiroso, sem ao menos buscar saber as versões dos envolvidos. Nos parece muito claro que não é a função de um servidor público realizar a análise sumária de uma falha da sua administração criticando um cidadão (...) Percebe-se que toda máquina pública não favorece os direitos do cidadão ao que tange a sua defesa contra os abusos policiais”.
Quanto a isso, o governo federal acuado não tem nada a dizer. Até porque foi Dilma que deu a senha para a repressão, ao dizer que “não toleraria vandalismo durante a copa” – sendo que vandalismo passou a ser qualquer tipo de manifestação. É essa Dilma chefe de torcida, comparável aos milicos que a torturaram em 1970, que nos leva de volta ao futebol.
Se a política vira futebol, o futebol vira política. Por isso a derrota do Brasil na copa, um choque de realidade, é tão necessária. Para pararmos de subterfúgios, como o do Brasil todo tratando do choro dos jogadores. Uma DR nacional neurótica e circular, que toma o desempenho no futebol como o problema nacional, quando ele apenas o espelha.
Escrevo antes do jogo contra a Colômbia. Pronto para comemorar a desclassificação do Brasil. Porque é ela que leva à libertação de Fábio Hideki. É ela que leva à libertação do país, à liberação da raiva e da alegria reais, sem biombos nem procuração.
Fonte: https://br.noticias.yahoo.com/blogs/alex-antunes/uma-derrota-necess%C3%A1ria-174122599.html#more-id